Nena Galves analisa o movimento espírita na virada de 2020

Por Eliana Haddad

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Aos 92 anos de idade, Nena Galves já assistiu muita coisa em matéria de movimento espírita. Ao lado de Chico Xavier, Nena e Francisco Galves conviveram por décadas pelos estreitos laços de amizade, testemunhando momentos marcantes da história do espiritismo no Brasil, como o programa Pinga-Fogo, na tv Tupi, em 1971. Convidada a fazer um balanço sobre mais uma década de movimento espírita, Nena Galves nos concedeu esta entrevista, com toda sua franqueza e transparência.

Mais uma década se vai. Como a senhora analisa esse tempo que passou e o que espera da nova década que se inicia?

Perante o mundo espiritual uma década são frações segundos, porque somos imortais. Não mantenho expectativas de grandes mudanças, porque o progresso é lento. Nós nos perdemos nos atalhos da existência e o tempo passa sem que percebamos que a oportunidade da encarnação muitas vezes está sendo mal aproveitada,  no meio da comunicação rápida, do momento que se esvai, das coisas descartáveis. Quanto ainda malbaratamos o tempo, que é um tesouro para a transformação espiritual! Quantas mudanças deixamos de fazer por estarmos apegados a problemas do passado ou a preocupações com o futuro e deixamos de investir no nosso aprendizado de agora. 

Qual o papel do legado de Jesus na passagem do tempo?

Jesus viveu 33 anos. Não tinha os meios de comunicação que temos hoje. Desses 33, teve 3, 4 anos de pregação e fez tanto! E nós, nesse tempo que vivemos, quanto fizemos? O legado de Jesus estava baseado na humanidade e a nossa comunicação atual, no desafio do mundo moderno, não está voltada ao homem, mas às coisas, ao material. E a gente se perde muito mais querendo ter do que ser.

Como a senhora vê a atuação do movimento espírita frente às atuais dores humanas?

O espírita está fazendo o que pode, mas como todos, está também muito apegado com as conquistas materiais. Veja que quase não fundamos mais casas espíritas para acolher e esclarecer os que sofrem. E espiritismo sem centro espírita é o mesmo que doente sem pronto-socorro.

Sem muitas casas espíritas não vão adiantar tantos congressos, encontros, simpósios, viagens ao exterior para palestras, porque a dor, a emergência, não espera. A casa espírita é a representação do verdadeiro legado de Jesus. Você tem que estar lá, pronto para dar o consolo, o seu principal papel. É isso que Kardec nos pedia.

Estamos conseguindo levar adiante o Consolador Prometido?

Estamos fazendo muita força, mas ainda temos tanto a aprender e a oferecer! O tempo passa e precisa ser bem aproveitado. Também se exige muito de quem muito recebeu e o Consolador Prometido veio para quê? É claro que se deve esclarecer. Mas, se você não consola, não esclarece. Quando se tem muita dor, o raciocínio falta. Temos que primeiro ajudar a resolver o sofrimento para que se tenha coragem de continuar a vida e compreender os seus vários aspectos. Kardec nos mostrou que muito mais do que o fenômeno, importa o raciocínio lógico, o aprendizado do Cristo. Não o milagre. O aprendizado do amor é o nosso maior crescimento espiritual.

A senhora atende as mais variadas pessoas há mais de 50 anos, em entrevistas fraternas no Centro Espírita União. Vê mudança nas dores de hoje?

Antigamente as pessoas eram mais sofridas para a dor humana – a dor de perder um filho, a dor de perder o dinheiro, algo querido, a saúde. Hoje o sofrimento é outro. Os jovens aportam desesperados porque fracassaram nas profissões, porque erraram nas escolhas, porque não têm um meio de atendimento como eles esperam. Tanta comunicação e as pessoas se sentem sozinhas com seus sofrimentos! E muitas vezes também não sabemos o que dizer. Temos apenas que escutar. Os jovens não encontram o apoio para suas dores na família, porque os pais estão ocupados em ganhar dinheiro para lhes dar cada vez mais. Muitas vezes só vão perceber o sofrimento do filho depois que ele já foi adotado pelo traficante, já tentou o suicídio, entrou em depressão. 

Como podemos enfrentar melhor os desafios da vida? 

Há muitas queixas e precisamos treinar a ser fortes. Acreditar na vida, sabendo que ela tem, sim, suas amarguras, mas também momentos de alegria. É a nossa condição atual. Os desafios do mundo moderno chegaram muito depressa. Intelectualmente, o homem cresceu, o mundo tornou-se pequeno e nos foram escancaradas as portas do saber, da comunicação, da rapidez. 

O desafio é que o homem se comunica cada vez mais e melhor com a máquina, mas não está sabendo se comunicar verdadeiramente com a essência humana, que sofre com tantas carências. A família não se comunica, os amigos pensam que estão juntos. Há um afastamento do ser humano e isso prejudica a nossa evolução moral. O espiritismo ensina que precisamos estar, até mesmo em confronto, de braços dados com o ser humano, transmitindo energia, conhecimento, trocando experiências, errando e acertando, exercendo a escuta fraterna, discutindo-se valores.

O que fazer?

Parar e pensar. Sair dessas atitudes mecânicas, ouvir o coração, prestar atenção nos sentimentos. Não é o mundo moderno que está errado. Nós é que não estamos sabendo conviver com ele. Há depressão, suicídio, ansiedade, medo e desespero quando perdemos os valores materiais que tanto investimos e amealhamos. Não estávamos preparados para esse mundo consumista e não nos conformamos de ficar de fora. Criamos a necessidade desses valores para viver. 

O que a senhora orienta quando chega alguém se queixando de depressão?

Escuto com muita atenção para compreender como a parte espiritual pode ajudar. Isso depois da doença já haver sido diagnosticada, e a pessoa já estiver sendo tratada. Mas sempre pergunto: o que você perdeu? E logo se percebe o fio do novelo – ou perdeu alguém que amava, ou o emprego, o dinheiro, a saúde, a vida que tinha antes... enfim nosso orgulho se ressente quando nos sentimos perdedores. Como se tivéssemos apenas que ganhar em tudo, esquecendo-nos de que não viemos aqui a passeio, mas para aprendizados.

A senhora acha que as pessoas estão muito pessimistas? 

Precisamos prestar melhor atenção às queixas e tentar descobrir as causas. O espírita ainda acha que para auxiliar é preciso fazer assistências, mas está esquecendo de priorizar o amparo espiritual. Está interpretando o legado de Jesus de maneira ingênua, sem perceber que pode aplicar melhor esse conhecimento tão grande que Kardec nos deu. Ele soube também enfrentar isso tudo na sua época. Foi um desafio a vida dele!

A senhora está dizendo que estamos acomodados, distraídos? Por que isso estaria acontecendo?

Porque o prazer e a glória falam mais alto que o conhecimento. O espiritismo é claro. Nós é que estamos obscurecidos por esses prazeres, pela nossa vaidade e incompreensão. É preciso pensar no tempo que já perdemos. Jesus atuou direto com o ser humano e nós estamos fugindo disto. Está faltando essa aproximação, porque se você prestar atenção nas grandes assembleias, nos vídeos, nos eventos, o ser humano é o último. Quem brilha é o orador, na maioria das vezes fazendo shows. E a doutrina, brilha? Não é só a ideia, é o exemplo. A casa espírita tem que funcionar lado a lado com o sofrimento, porque ela tem condições de ser o consolador prometido. 

Quando vou a um lugar e pago, me sinto desobrigada e ainda exijo. Mas se eu recebo de graça eu me doo, eu trabalho, eu agradeço, eu cresço espiritualmente. A doutrina espírita está avançando muito lentamente, porque está fugindo da ideia principal a que veio. 

Mas a senhora não acha que todos esses eventos, em áreas tão diversas,  estão levando as ideias espíritas?

Levam a ideia, mas se ficam só na ideia, sem a ação, e não compreendem as dores, não vão consolar o coração. A ideia se perde. Você pode ter a ideia de um projeto, mas se não entrar a ação do trabalhador, você não levanta a casa. 

As casas espíritas estão buscando especialistas para palestras sobre depressão, ansiedade. Que instrumentos de consolo teríamos dentro do espiritismo para os que nos procuram?

O espiritismo não faz milagres. É a mudança do ser humano que faz com que ele melhore. E é isso que devemos incentivar: a conscientização sobre a existência do lado espiritual da vida, o imenso valor do trabalho do autoconhecimento e a esperança de dias melhores. A psicologia é o estudo da alma. O espiritismo tem a obrigação de estudar e compreender a alma para poder levar o socorro a quem sofre. Se o psicólogo, o psiquiatra, o médico ou o especialista, sem cobrar, tiver a postura de olhar olho no olho das pessoas que o assistem em uma palestra no centro e sentir que estão sofrendo, ele estará preparado para falar sobre as dores humanas em seu sentido espiritual. No consultório, o especialista leva o conhecimento acadêmico; na casa espírita, ele  deve levar o coração, o sentimento. 

O que a senhora diria aos jovens, que têm se afastado das casas espíritas?

A linguagem do amor é uma só: acolhimento e exemplo. Também existe a questão de maturidade espiritual; muitas vezes uma criança entende muito mais uma mensagem do que um adulto que não sai das primeiras fileiras das palestras na casa. A vida se resume em 50, 60, 70 anos. O jovem tem que realmente lutar, trabalhar, fazer. E não facilmente vai alcançar o sucesso só porque saiu da faculdade. Mas ele hoje é apressado; não quer esperar. Quer rapidamente ter muito dinheiro, viajar todo ano, ter o melhor carro, ser influente. A vida não é assim. 

Acabam não vivendo as etapas necessárias para o amadurecimento e realização. Precipitam-se, tendo como meta a conquista material, que acaba e não preenche o vazio. 

Nunca houve tão cedo a prática do sexo, porque é angustiante demais para o jovem esperar. E amar é também esperar. O jovem precisa da experiência do mais velho. Estamos dando a ele essa experiência, estamos sendo humildes o suficiente para perceber que também precisamos aprender com o jovem? Estamos vivendo numa sociedade repartida, sem aproveitarmos as experiências uns dos outros. Assim,  não se criam laços fortes de confiança, de respeito. 

O que fazer para se manter atualizado, a senhora que tem 92 anos... 

O trabalho. Eu vou ao centro quatro vezes por semana. E, quando me sento à mesa, enquanto o palestrante fala, eu olho no olho de cada um na plateia para ver como as pessoas estão. Eu conheço os problemas de todos. Se você se afasta da casa espírita, você não cresce no contato. Fica longe dos que te ouvem e não fala a mesma língua. 

Qual a mensagem para 2020?

Que possamos ser mais fraternos com os companheiros. Brigar menos, atacar menos, falar menos e trabalhar mais. Que possamos estar atentos à capacidade que temos de desenvolver e multiplicar nossos talentos. Que o tempo não se perca em coisas bobas e que tenhamos sempre Jesus como o maior exemplo de investimento. Ele foi um bom investidor nas ideias do Pai.